Lei nº 15.068/2024: Paul Singer, Economia Solidária e as parcerias MROSC

Por Lucas Seara, fonte: Medium

No final do ano de 2024 entrou em vigor a chamada ‘Lei Paul Singer’, que estabelece os contornos jurídicos da economia solidária no Brasil. O homenageado, Paul Singer, foi pesquisador e escritor, tendo atuado como Secretário Nacional de Economia Solidária, uma referência nacional e internacional sobre o tema, autor de diversos livros sobre economia e política¹.

 

A Lei nº 15.068 é de 23 de dezembro de 2024 e dispõe sobre os empreendimentos de economia solidária e a Política Nacional de Economia Solidária. Além disso, cria o Sistema Nacional de Economia Solidária², com objetivo de fomentar a economia solidária e o trabalho associado e cooperativado (art. 1º).

Segundo esta norma, o conceito da economia solidária compreende as atividades de organização da produção e da comercialização de bens e de serviços, da distribuição, do consumo e do crédito, observados os princípios da autogestão, do comércio justo e solidário, da cooperação e da solidariedade, a gestão democrática e participativa, a distribuição equitativa das riquezas produzidas coletivamente, o desenvolvimento local, regional e territorial integrado e sustentável, o respeito aos ecossistemas, a preservação do meio ambiente e a valorização do ser humano, do trabalho e da cultura (art. 2º).

Aqui propomos um encontro da Lei Paul Singer com o MROSC, o regime de parcerias entre organizações da sociedade civil (OSC) com os poderes públicos, especialmente com a chamada Lei das Parcerias – Lei nº 13.019/2014³.

Segundo a Lei nº 15.068/2024, a Política Nacional de Economia Solidária permitirá que o poder público e a sociedade civil formulem e implementem planos e ações voltados ao fomento da economia solidária. Aqui já destacamos uma proximidade com o espírito de parceria que norteia a Lei nº 13.019/2014.

O regime jurídico das parcerias MROSC tem como fundamentos a gestão pública democrática, a participação social e o fortalecimento da sociedade civil. Dentre as suas diretrizes, destaca-se a promoção, o fortalecimento institucional, a capacitação e o incentivo à OSC para a cooperação com o poder público. O MROSC deve assegurar: o reconhecimento da participação social como direito do cidadão; a solidariedade, a cooperação e o respeito à diversidade para a construção de valores de cidadania e de inclusão social e produtiva; a promoção do desenvolvimento local, regional e nacional, inclusivo e sustentável; o direito à informação, à transparência e ao controle social das ações públicas.

Para ser considerado ‘empreendimento de economia solidária’ e alcançar os benefícios da política recém criada, os interessados devem apresentar as seguintes características:

(i) organizações autogestionárias (independe de sua forma societária) cujos membros exerçam coletivamente a gestão das atividades econômicas e a decisão sobre a partilha dos seus resultados, por meio da administração transparente e democrática, da soberania assemblear e da singularidade de voto dos associados;

(ii) tenham seus membros diretamente envolvidos na consecução de seu objetivo social;

(iii) pratiquem o comércio de bens ou prestação de serviços de forma justa e solidária;

(iv) distribuam os resultados financeiros da atividade econômica de acordo com a deliberação de seus membros, considerada a proporcionalidade das operações e atividades econômicas realizadas individual e coletivamente;

(v) destinem o resultado operacional líquido, quando houver, à consecução de suas finalidades, bem como ao auxílio a outros empreendimentos equivalentes que estejam em situação precária de constituição ou consolidação, e ao desenvolvimento comunitário ou à qualificação profissional e social de seus integrantes.

A Lei Paul Singer estabelece que os empreendimentos econômicos solidários formalizados juridicamente serão classificados como pessoas jurídicas de fins econômicos sem finalidade lucrativa⁴. No caso daqueles que adotarem o formato jurídico de ‘cooperativa’, serão constituídos e terão seu funcionamento seguindo a legislação específica.

Embora não exija um formato específico para caracterizar um empreendimento econômico solidário, a Lei Paul Singer trata muito detidamente de duas figuras jurídicas: associação e cooperativa. Ambas estão incluídas no conceito de OSC estabelecido na Lei nº 13.019/2014, art. 2º:

Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:

I — organização da sociedade civil:

a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva;

b) as sociedades cooperativas previstas na Lei nº 9.867, de 10 de novembro de 1999 ; as integradas por pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade pessoal ou social; as alcançadas por programas e ações de combate à pobreza e de geração de trabalho e renda; as voltadas para fomento, educação e capacitação de trabalhadores rurais ou capacitação de agentes de assistência técnica e extensão rural; e as capacitadas para execução de atividades ou de projetos de interesse público e de cunho social.

c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos;

As diretrizes que orientam os empreendimentos beneficiários da Política Nacional de Economia Solidária são:

(i) administração democrática;

(ii) garantia da adesão livre e voluntária;

(iii) trabalho decente;

(iv) sustentabilidade ambiental;

(v) cooperação entre empreendimentos e redes;

(vi) inserção comunitária, com a adoção de práticas democráticas e de cidadania;

(vii) prática de preços justos, de acordo com os princípios do comércio justo e solidário⁵;

(viii) respeito às diferenças e à dignidade da pessoa humana e promoção da equidade e dos direitos e garantias fundamentais;

(ix) transparência e publicidade na gestão dos recursos e na justa distribuição dos resultados;

(x) estímulo à participação efetiva dos membros no fortalecimento de seus empreendimentos;

(xi) envolvimento dos membros na consecução do objetivo social do empreendimento;

(xii) distribuição dos resultados financeiros da atividade econômica de acordo com a deliberação de seus membros, considerada a proporcionalidade das operações e atividades econômicas realizadas individual e coletivamente.

Os objetivos da Política Nacional de Economia Solidária são:

(i) contribuir para a concretização dos preceitos constitucionais que garantam aos cidadãos o direito a uma vida digna;

(ii) fortalecer e estimular a organização e a participação social e política em empreendimentos de economia solidária;

(iii) fortalecer e estimular o associativismo e o cooperativismo, que caracterizam os empreendimentos de economia solidária;

(iv) reconhecer e fomentar as diferentes formas organizativas de empreendimentos qualificados nos termos desta Lei como de economia solidária;

(v) contribuir para a geração de renda, a melhoria da qualidade de vida e a promoção da justiça social;

(vi) contribuir para a equidade e propiciar condições concretas de participação social;

(vii) promover o acesso da economia solidária a instrumentos de fomento, a meios de produção, a mercados e ao conhecimento e às tecnologias sociais necessários ao seu desenvolvimento;

(viii) promover a integração, a interação e a intersetorialidade das políticas públicas que possam fomentar a economia solidária;

(ix) apoiar ações que aproximem consumidores e produtores, de modo a impulsionar práticas relacionadas ao consumo consciente e ao comércio justo e solidário;

(x) contribuir para a redução das desigualdades regionais por meio de ações de desenvolvimento territorial sustentável;

(xi) promover práticas produtivas ambientalmente sustentáveis;

(xii) contribuir para a promoção do trabalho decente nos empreendimentos econômicos solidários;

(xiii) fomentar a articulação em redes dos empreendimentos de economia solidária.

São também elencados os princípios da Política Nacional de Economia Solidária:

(i) não discriminação e promoção da igualdade de oportunidades;

(ii) geração de trabalho e renda a partir da organização do trabalho com foco na autonomia e na autogestão;

(iii) articulação e integração de políticas públicas para a promoção do desenvolvimento local e regional;

(iv) coordenação de ações dos órgãos que desenvolvem políticas de geração de trabalho e renda;

(v) estímulo à economia solidária como estratégia de desenvolvimento sustentável;

(vi) participação social na formulação, na execução, no acompanhamento, no monitoramento e no controle das políticas e dos planos de economia solidária em todas as esferas de governo; e

(vii) transparência na execução dos programas e das ações e na aplicação dos recursos destinados ao Sinaes.

A Política Nacional de Economia Solidária se organiza pelos seguintes eixos de ações:

(i) formação, assistência técnica e qualificação social e profissional;

(ii) acesso a serviços de finanças e de crédito;

(iii) fomento à comercialização, ao comércio justo e solidário e ao consumo responsável;

(iv) fomento aos empreendimentos econômicos solidários e às redes de cooperação;

(v) fomento à recuperação de empresas por trabalhadores organizados em autogestão; e

(vi) apoio à pesquisa e ao desenvolvimento e apropriação adequada de tecnologias.

Há uma atenção especial para aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade social, na medida em que se garante prioridade destes na Política Nacional de Economia Solidária, que poderá atender aos beneficiários de programas sociais que atuem em empreendimentos econômicos solidários.

O Cadastro Nacional de Empreendimentos Econômicos Solidários identificará empreendimentos econômicos solidários para o acesso às políticas públicas. Os grupos informais de economia solidária cadastrados serão incentivados a buscar sua regularização jurídica para se inserirem plenamente no regime legal associativo. Aqui se destaca mais um ponto de proximidade com o regime do MROSC, o incentivo ao fortalecimento institucional das OSC e a ampla possibilidade de parceria e articulação.

A Lei institui o Sistema Nacional de Economia Solidária (Sinaes) que tem por objetivo:

(i) implementar a Política Nacional de Economia Solidária;

(ii) integrar esforços entre os entes federativos e com a sociedade civil;

(iii) promover o acompanhamento, o monitoramento e a avaliação da Política Nacional de Economia Solidária.

O Sinaes tem as seguintes diretrizes:

(i) promoção da intersetorialidade das políticas, dos programas e das ações governamentais e não governamentais;

(ii) descentralização das ações e articulação, em regime de colaboração, entre as esferas de governo;

(iii) articulação entre os diversos sistemas de informação existentes no âmbito federal, incluído o Sistema de Informações em Economia Solidária, a fim de subsidiar o ciclo de gestão das políticas direcionadas à economia solidária nas diferentes esferas de governo;

(iv) articulação entre orçamento e gestão;

(v) cooperação entre o setor público e as OSC no desenvolvimento de atividades comuns de promoção da economia solidária.

Aqui se destaca a última diretriz acima descrita: a cooperação entre o setor público e as OSC no desenvolvimento de atividades comuns é a interseção entre a Lei Paul Singer e a Lei das Parcerias.

Importante ressaltar ainda que em ambas as legislações – Lei Paul Singer e Lei das Parcerias – tem destaque a preocupação com o tema da preservação, conservação, proteção dos recursos hídricos e do meio ambiente. Também aparecem a preocupação com os direitos humanos e fundamentais da cidadania, além do cuidado com os aspectos culturais envolvidos na atuação das entidades, para além das questões econômicas ou jurídicas⁶.

Mas quem integra o Sinaes?⁷ A Conferência Nacional de Economia Solidária; o Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES); os órgãos da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de economia solidária; as organizações da sociedade civil e os empreendimentos econômicos solidários; os conselhos estaduais, municipais e distrital de economia solidária; a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e a União Nacional das Organizações Cooperativistas Solidárias (Unicopas).

Há que se falar do papel da Conferência Nacional de Economia Solidária, com atribuição de avaliação da Política Nacional do setor. Quanto aos prazos, as conferências serão realizadas com periodicidade não superior a quatro anos. A conferência nacional será precedida de conferências estaduais, distrital, municipais ou territoriais.

Por sua vez, ao Conselho Nacional da Economia Solidária (CNES)⁸, órgão de articulação e controle social, caberá elaborar e propor o Plano Nacional de Economia Solidária ao Poder Executivo federal. Para tanto, deve considerar as deliberações da Conferência Nacional de Economia Solidária e incluir os requisitos orçamentários para sua consecução.

Destaque-se ainda que a Lei nº 15.068/2024 promove uma alteração no artigo 44 do Código Civil⁹, inserindo entre as pessoas jurídicas de direito privado, os empreendimentos de economia solidária. Estes seguirão as disposições aplicáveis às associações, de forma subsidiária (§ 2º).

Pela sua relevância, transcreve-se a artigo 44 do Código Civil, que passou a ter a seguinte redação:

Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:

I — as associações;

II — as sociedades;

III — as fundações.

IV — as organizações religiosas;

V — os partidos políticos;

VII — os empreendimentos de economia solidária.

§ 1º São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.

§ 2º As disposições concernentes às associações aplicam-se subsidiariamente aos empreendimentos de economia solidária e às sociedades que são objeto do Livro II da Parte Especial deste Código.

§ 3º Os partidos políticos serão organizados e funcionarão conforme o disposto em lei específica.

A economia solidária ganha novo status jurídico no Brasil. Um amplo potencial se abre para as entidades que atuam neste campo. Parcerias com os poderes públicos se mostram um grande caminho para o fortalecimento das políticas públicas do setor, fundamentais para o atendimento da cidadania.

Para maiores informações, pareceres, consultas, parcerias e outras articulações, fale com a equipe OSC LEGAL: www.osclegal.org

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Lucas Seara – Advogado e consultor. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Diretor do OSC LEGAL Instituto.

1. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2024/12/presidente-lula-sanciona-lei-paul-singer-que-cria-politica-nacional-de-economia-solidaria

2. Lei nº 15.068, de 23 de dezembro de 2024 – Dispõe sobre os empreendimentos de economia solidária e a Política Nacional de Economia Solidária; cria o Sistema Nacional de Economia Solidária (Sinaes); e altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

3. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014 – Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999

4. A lei exclui dos benefícios da Política Nacional de Economia Solidária os empreendimentos que tenham como atividade econômica a intermediação de mão de obra subordinada.

5. Comércio justo e solidário, segundo a norma, trata-se da prática comercial diferenciada pautada nos valores de justiça social e solidariedade realizada pelos empreendimentos de economia solidária; preço justo, a definição de valor do produto ou serviço construída a partir do diálogo, da transparência e da efetiva participação de todos os agentes envolvidos em sua composição, que resulte em distribuição equânime do ganho na cadeia produtiva.

6. O regime de parcerias MROSC deve garantir ainda: a valorização dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais; a preservação e a valorização do patrimônio cultural brasileiro, em suas dimensões material e imaterial.

7. A lei indica que os critérios e os procedimentos para adesão ao Sinaes serão estabelecidos em regulamento.

8. Segundo a norma, o serviço dos conselheiros, efetivos e suplentes, no CNES é considerado de natureza relevante e não será remunerado.

9. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Institui o Código Civil.

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