Menos instituição, mais movimento

Por Selvino Heck
Está (quase) todo mundo se perguntando, no campo popular e da esquerda: Onde foi que erramos? O crescimento da direita raivosa, a intolerância por todos os lados, a falta de projeto, a não efetivação de mudanças estruturais, a ausência de uma utopia libertária, entre outros tantas questões da conjuntura, deixam muitas perguntas no ar.

As respostas são ou podem ser múltiplas e não se restringem ao Brasil. Os problemas e dilemas são latino-americanos, mundiais e atingem indistintamente movimentos sociais, igrejas, partidos, pastorais, enfim quase todas as organizações do campo popular.

Tudo nasce como movimento. Depois, com o tempo, necessariamente se institucionaliza em algum momento e em algum grau, maior ou menor. Até na vida pessoal, familiar, comunitária. Também nas organizações sociais e na esfera política. Não existem apenas as alegrias e a felicidade do namoro. Vêm depois o noivado, o casamento, os filhos, a rotina, os hábitos arraigados, os problemas e os limites da vida.

A dificuldade ou o segredo é como manter-se movimento ao longo do tempo, mesmo passando pela necessária institucionalização. O movimento é aberto, ouve, dialoga, constrói o novo no cotidiano, permite o livre fluir das ideias, está pouco preso a amarras, regras, leis, convenções. É alegria. A instituição carrega consigo limites, estruturas mais ou menos pesadas, muitas vezes se fecha, é pouco permeável, enreda-se na burocracia, engessa o pensamento, vira rotina, cansaço, obrigação.

Há períodos da história em que predomina o lado movimento, em geral menores. Na maior parte do tempo, a instituição é dona do espaço e do pedaço. Mas não há como ser sempre e só movimento. A instituição é fundamental, necessária e insubstituível. A questão: como manter a alegria do namoro? Como renovar-se e renovar a instituição sempre, mesmo as mais pesadas, as seculares, ou as carcomidas pelo tempo?

O problema é quando a instituição, para se manter e perpetuar, justifica os fins pelos meios. Quando a corrupção corrói suas estruturas. Quando as teias da burocracia e o centralismo tomam conta e substituem a democracia. Ou o carguismo, o apego a salários, vantagens, privilégios e ao poder tornam-se centrais e conduzem a instituição. Há incapacidade de autorrenovação. O lado movimento perdeu-se em alguma esquina da história.

O cientista político Marcos Nobre escreveu interessante artigo a respeito, falando dos partidos (Marcos Nobre, O futuro dos partidos, Valor Econômico, 3, 4 e 5/12/16, A8): “Pode parecer ficção científica para quem se tornou adulto a partir da década de 1990, mas no Brasil partidos já estiveram presentes na vida cotidiana das pessoas. Estruturas partidárias chegavam ao nível local, eram espaços abertos à elaboração de experiências e a diferentes formas de organização coletiva de ações e intervenções. Hoje, os partidos não estão mais no cotidiano das pessoas. Partidos deixaram de ser braços da sociedade no sistema político para se tornarem braços do Estado na sociedade. Partido passou a ser sinônimo de partido no poder.”

Os partidos políticos, especialmente os de esquerda, perderam o lado movimento, e tornaram-se quase apenas instituição. Institucionalizaram-se, disputam eleições, ganham/perdem. Saíram das ruas, o projeto de sociedade tornou-se secundário. Para disputar eleições, precisa-se de dinheiro, que precisa de estrutura e meios para ser angariado. Ganhando eleições, governos, mandatos, cargos e suas benesses precisam ter assegurado continuidade. As direções ‘obrigam-se’ a manter os espaços conquistados, há crescente dificuldade de ouvir e dar espaço à base, etc., etc., etc.

A reflexão serve também para movimentos populares, pastorais, igrejas, ONGs. Serve também para mim, militante, educador/a popular, lutador/a.

Onde está o sonho? Onde está a relação cotidiana com o povo? Onde está a militância com causa e coragem? Cadê a utopia? Como manter a chama acesa?
Os partidos, e a política em sentido mais amplo, muitas vezes deixaram de ser necessários. Pouco ouvem, pouco dialogam. Neste contexto, escreve Marcos Nobre: “É aí que secundaristas ocupam escolas, por exemplo. Para fazê-las funcionar. Não querem nem ouvir falar de partidos.” Os estudantes que ocupam escolas, Institutos Federais, Universidades são fundamentalmente movimento. Encontram-se, lutam e sonham juntos, constroem a ocupação todos os dias e o tempo todo.

Os tempos precisam ser de reinvenção, de reencanto. Os tempos são de mais movimento e de menos instituição. A democracia exige, nesta quadra histórica, que o lado movimento se (re)apresente e que, para sua construção permanente, o lado instituição seja diminuído ou profundamente renovado, e, eventualmente, em alguns casos, algumas instituições sejam até mesmo enterradas.
Vale para a vida pessoal de cada um, vale para a comunidade, vale para o movimento social, vale para os partidos políticos. Menos instituição, mais movimento.

Selvino Heck é deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990).

Escrito para Sul 21

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