O DIREITO de MORAR: A ocupação Saraí

O segundo capítulo da Constituição brasileira versa sobre os Direitos Sociais do cidadão. Ali, no artigo sexto, está: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Ou seja: a moradia equivale à saúde, à educação e a tantos outros enquanto direitos sociais garantidos ao cidadão. É obrigação do Estado, portanto, prover condições de moradia a brasileiras e brasileiros, não importa de onde vêm ou onde vivem.

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Do muito movimentado centro de Porto Alegre, grande parte das pessoas que circulam não sabe que em uma das suas esquinas esquecidas – abandonadas, é melhor dizer – está um prédio vazio – abandonado, é melhor dizer – que pela quarta vez é ocupado por famílias integrantes do Movimento Nacional de Luta e Moradia, o MNLM. Talvez essas pessoas lembrem de um prédio aleatório que, pela situação de abandono, até mesmo o maior grupo de crime organizado do país, o PCC, fez dali sede para uma fracassada tentativa de roubo a banco. Esse prédio amarelo de paredes pichadas está em frente ao Cais do Porto, tem entrada pela Rua Caldas Júnior na esquina com a Avenida Mauá e presenteia, aos poucos que já subiram suas escadas, uma das belas vistas que a cidade possui do Guaíba.

Quando chegamos, o estrondo das correntes batendo com força na porta de metal da entrada, assim como a grossura dos cadeados que a trancam, fazem clara a necessidade constante de vigilância dos novos moradores. Afinal, em meados do último setembro, a polícia militar invadiu o prédio e agrediu os ocupantes. O próprio Comandante da Brigada Militar admitiu a agressão e declarou que a operação foi ilegal e que não teve ordens do comando central. Os primeiros contatos de nossa reportagem seguem os tons de cautela. É com as conversas, as demonstrações claras de nossas intenções, um início de convivência no qual o receio dá lugar à abertura. Um afeto mais do que suficiente para dar suavidade à dureza dos metais e calor ao frio de uma construção de espaços semidestruídos. Um lugar que, num primeiro momento, precisa de imaginação para que muitos de nós o consideremos algo perto de uma casa. Mas que se faz perceber, depois das impressões iniciais, o potencial que têm as pessoas para transformá-lo em lar.

Quem nos recebe nesse primeiro encontro é Paula Soares e Ceriniani Vargas, a Ni, duas integrantes de anos do MNLM, experientes na luta pelo direito à moradia no país. Ni, graduanda em Ciências Sociais na UFRGS, é uma das coordenadoras do movimento no Rio Grande do Sul e descreve muito das questões de formação e de ideais que compõem o coletivo:
– Os movimentos pela moradia começam lá pelo final da década de 80, onde se tem um grande movimento das pessoas saindo da área rural e indo para as cidades, e onde existe uma maior abertura para que se possa formar esse tipo de iniciativa. Nessa época, o MNLM trata muito da questão das ocupações irregulares, de pessoas que vinham tentar a vida na cidade e descobriam que aqui não era tudo o que diziam, que era muito difícil de sobreviver. Em 1990, houve um grande encontro desses movimentos locais, e surgiu o Movimento Nacional de Luta pela Moradia.

Antes focado na regularização e resistência dos que ocuparam morros, arroios, terrenos baldios e construções abandonadas, hoje o movimento é atuante em diversas instâncias pela garantia do direito à moradia. É integrante do Conselho das Cidades, criado pelo Governo Federal e orquestrado pelo Ministério das Cidades, e tem na questão da reforma urbana – uma reforma que garanta uma moradia digna e legal à população sem-teto – a sua maior bandeira. Mais do que isso, uma reforma que garanta às populações carentes habitações nas regiões efetivamente centrais das cidades, acabando com o estigma de programas governamentais que, insistentemente, acabam conduzindo famílias para as periferias das metrópoles, longe de seus locais de trabalho e de serviços de necessidade básica inexistentes nas regiões afastadas.

Paula, 50, é uma das coordenadoras da atual ocupação, grande parte deles integrando movimentos negros e pelo direito à moradia. É uma negra de belos cabelos trançados que fala da sua militância como quem descreve uma paixão. Ela transmite o caráter apaixonante ao qual adjetiva suas ações ao afirmar que “se não fosse por essa luta, muitos de nós não teríamos onde morar ou como sobreviver”. É uma paixão que se confunde com o instinto de sobrevivência quando fala que não estremece quando vê, sem poder reagir, agentes da lei botando abaixo lugares humildes que por certo tempo foram sua morada.

A entrada do prédio é tomada por várias faixas que identificam a ocupação e deixam claro o porquê de estarem ali. Segundo os moradores, é um reconhecimento necessário para demonstrar que são indivíduos e famílias na busca por habitação, e que não necessitam ficar às sombras. Isso dá mais abertura com a vizinhança – por sinal, uma das políticas dos moradores: tentar relacionar-se bem com os vizinhos. O primeiro andar é da portaria, onde os visitantes necessariamente precisam se identificar. Após o primeiro lance de escadas, está a área de convivência, onde ocorrem as atividades culturais e os encontros promovidos pela Ocupação. A Ciranda, área das crianças, a cozinha coletiva e os banheiros, também compartilhados, estão aqui. O terceiro andar é o dos quartos, atualmente delimitados por lonas e barracas – o acesso é restrito. Por toda a ocupação, as paredes, ora destruídas, agora ganham vida com pinturas e frases de efeito. “Se morar é um privilégio, ocupar é um direito” aparece com frequência. A área da Ciranda ganhou a decoração de dezenas de palmas de mãos de crianças gravadas com tinta rosa. Muitas delas já são praticamente adultas, visto que as palmas estão ali registradas faz 7 anos. Assim como outras pinturas, elas resistem desde as primeiras ocupações. Atualmente, a ocupação abriga em torno de 30 pessoas, de crianças a senhoras de 70 anos.

O prédio tem uma história atribulada. Construído com recursos públicos pelo Banco Nacional de Habitação, ele era destinado, justamente, à moradia social, onde abrigaria entre 40 e 50 famílias. No entanto, isso nunca aconteceu. Repassado à Caixa Econômica Federal, serviu de escritório até ser esvaziado, há mais de 20 anos. A Caixa então decidiu vendê-lo, e a construção deixou de ser federal para se tornar propriedade particular: no início dos anos 2000, foi vendido por 600 mil reais para a família De Conto, controladora da Risa Empreendimentos Imobiliários LTDA. Até hoje, o prédio continua abandonado, o que demonstra claramente, segundo o MNLM, que os novos proprietários se interessam no imóvel somente pela possibilidade de lucro a partir de especulação. Foi nesse meio tempo de total abandono que a polícia descobriu que o PCC cavava um gigantesco túnel no interior do prédio que seria utilizado para um assalto a banco na capital gaúcha. A Risa havia revendido o prédio por 1 milhão e 200 mil reais, o dobro do valor que havia pago, para um laranja da organização. Isso em 2006. Depois de grande imbróglio, o prédio voltou para o controle da empresa, apesar de a matrícula do imóvel nunca ter sido oficialmente transferida pela Caixa Econômica. Ainda assim, o prédio continuava vazio.

300 contra 30

O prédio é símbolo da luta nacional pela moradia, diz Ni. Essa é a quarta vez que ele é ocupado. Duas delas foram ações de denúncia pela situação do prédio, com duração de um ou dois dias. A ocupação de moradia que mais durou teve 4 meses, de 20 de novembro de 2006 a 23 de março de 2007. A maneira como foram removidos também é simbólica – mas da repressão. Paula e Ceriniani contam juntas uma história ouvida muitas vezes, por muitas vozes, nos encontros na Saraí:  “Era seis da manhã e nós acordamos com o barulhos das sirenes, da marcha e dos cassetetes batendo nos escudos. A Avenida Mauá estava toda fechada e mais de 300 policiais nos cercavam. O batalhão de operações especiais descia a fachada do prédio vizinho de rapel. E aqui dentro estavam umas 30 pessoas, inclusive as crianças. Nós sabíamos que, mais do que garantir a nossa expulsão, eles queriam deixar claro como iam agir nessas situações. Era uma questão de demonstração de força, uma agressão psicológica.”

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Na época, a ocupação se chamava 20 de Novembro. Daí, surge a cooperativa de mesmo nome, hoje um dos principais núcleos do MNLM no Estado, servindo de artifício para lidar com questões legais e também de fonte de renda: a cooperativa tem, além de outras atividades, produções de artesanato, serigrafia e panificações.

Após a remoção, o prédio foi ocupado novamente em 2011, uma ocupação-simbólica de 40 horas com o objetivo de denúncia. Em 28 de agosto deste ano, em uma ação que integrou a Jornada Nacional de Luta pela Moradia, o prédio foi ocupado uma vez mais. Decidiram, agora, que a ocupação se chamaria Saraí. Integrante do movimento, Saraí foi a primeira vereadora negra de Porto Alegre. Faleceu em março. Agora, a intenção é efetivamente reverter o prédio em moradia social.

Função social da propriedade

A primeira tentativa do Movimento para a situação é obter na Justiça a desapropriação por abandono do imóvel. O principal argumento dos ocupantes é fundamentado por algo chamado função social da propriedade.

“Fruto da luta dos movimentos pela moradia, foi aprovado o Estatuto da Cidade, que transforma em lei a questão da função social da propriedade. Ou seja, o proprietário não tem o direito sobre uma propriedade privada só porque ele pagou por ela. Também tem obrigações, seja de terrenos, de casas, prédios, outras construções. Não é porque aquilo é propriedade privada que pode ficar abandonado por décadas se outras tantas pessoas podem fazer daquilo moradia. Mesmo com a lei federal aprovada, nenhum estado a cumpre justamente porque as construtoras e os empresários utilizam esses imóveis para a especulação e, hoje, é a vontade deles que vale”, explica Ni.

Ela conta que, na última reunião na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS, foi preciso deixar claro ao procurador de Justiça presente que ela “também entendia de leis” ao se posicionar contra a reintegração de posse concedida pela Justiça aos proprietários atuais. O argumento serviu e a Comissão acertou um prazo de 60 dias de negociação antes que a reintegração de posse seja cumprida. O deputado estadual Jeferson Fernandes, PT, presidente da Comissão, explica que o prazo também foi concedido para garantir segurança aos ocupantes depois da violência policial mais recente, além de uma remoção, se necessária, o menos agressiva possível. Aliás, a ordem de reintegração de posse do prédio foi expedida 4 dias (contando aí um final de semana) após a ação de ocupação. O deputado também ressalta que procedimentos legais foram deixados de lado na aprovação do despejo e que isso pesou para que os moradores obtivessem um prazo para negociação. Dadas as tratativas na Comissão, a ordem não foi cumprida. Enquanto isso, as famílias dali têm até 24 de dezembro para negociarem, discutirem, resistirem e pressionarem os governos para garantir que não sejam uma vez mais removidas.

No dia 12 de novembro se realizou uma Audiência Pública na Câmara de Vereadores para debater a questão da Saraí. Estavam presentes, além de vereadores, um representante da Caixa Econômica Federal, a defensora pública Adriana Schefer, que trabalha com movimentos sociais para a habitação, uma procuradora do município de Porto Alegre, o secretário de Habitação do estado, uma representante do Departamento Municipal de Habitação, além, é claro, de vários ocupantes da Saraí. Na Audiência, a Procuradora Andrea Vizzotto esclareceu que, apesar de ser na teoria a melhor ferramenta legal a ser buscada para a conquista do prédio, entrar com um processo para a desapropriação do imóvel baseado na questão da função social da propriedade é inviável. O tempo da burocracia é imenso, o processo como um todo duraria mais de 3 anos, no mínimo. É um artifício legal que fica inutilizado por sua própria regulamentação: uma burocracia que não cabe às urgências das populações. Mesmo com diversas indefinições levantadas na Audiência, como o atraso no pagamento do IPTU pelo proprietário, a questão do financiamento ainda não esclarecida pela Caixa e outros entraves que servem de argumento para a transformação do prédio em moradia social, a desapropriação parece não ser uma opção viável.

Dessa maneira, a alternativa no horizonte da Ocupação causa estranhamento à população em geral quando se fala em movimentos de luta por moradia ou de pessoas sem-teto: a possibilidade de compra do imóvel. É claro que para tanto seriam necessários recursos e financiamentos governamentais, além de interferências como declarar o interesse social do imóvel. No entanto, tal alternativa vem sendo utilizada cada vez mais por movimentos pela moradia social. O programa federal Minha Casa, Minha Vida tem uma regulamentação específica que trata do financiamento dos recursos geridos por entidades cadastradas junto ao governo. A cooperativa 20 de Novembro é cadastrada sendo, assim, capacitada para gerenciar recursos tanto da compra quanto das reformas necessárias ao prédio. E tal opção não seria inédita: a própria cooperativa é a entidade gestora de quase 5 milhões de reais destinados à obra de um prédio na Rua Barros Cassal, também na região central de Porto Alegre, que foi conquistado pelo movimento para servir de moradia social. Diversas famílias já estão no processo de fazer daquele prédio sua residência legal.

Vazios Urbanos

Uma das necessidades do movimento é de conseguir fazer com que a sociedade entenda que não só os mais carentes são afetados pela especulação imobiliária, mas todos os cidadãos. O jogo das construtoras e dos especuladores, segundo o MNLM, afeta a todos ao elevar o preço dos imóveis artificialmente visando tão somente ao lucro. É o caso clássico de formação de uma bolha, já que toda a valorização nada mais é do que, como diz o termo, especulativa. Além, é claro, de toda a função social que deveria ser cumprida. Só em Porto Alegre, dados do IBGE de 2010* confirmam que existem mais de 46 mil imóveis vazios e sem uso, que poderiam servir de moradia. O MNLM aponta que 70 mil famílias estão em situação de desabrigo na região metropolitana da Capital.

Essa questão dos vazios urbanos é muito presente entre os que discutem a reforma urbana nacional e internacionalmente. Sobretudo os grandes vazios urbanos nas áreas centrais das grandes metrópoles. Em 2010, havia cerca de 6,07 milhões de habitações vagas no Brasil. O número necessário para suprir as carências de moradias familiares era de 5,8 milhões de domicílios*. Havia em torno de 200 mil imóveis vagos a mais do que o necessário para suprir o déficit existente. Países como Inglaterra, Holanda e Alemanha têm legislações específicas sobre o tema, proibindo os imóveis centrais de ficarem vazios sem justificativa por determinado tempo, geralmente em torno de seis meses. Após esse período, a propriedade pode ser ocupada e, inclusive, demandada judicialmente pelos ocupantes. Os movimentos sociais por moradia, em muitos países europeus, foram fundamentais para o reconhecimento de direitos básicos e o estabelecimento dos Estados de Bem-Estar Social. Um dos desafios dos estudiosos e militantes em solo brasileiro é elevar a discussão a tal ponto. Ni afirma que é preciso fazer essa ideia de reforma urbana estar atrelada às reformas necessárias ao desenvolvimento do país. “Pela luta dos movimentos do campo, hoje muitos entendem a importância da reforma agrária para o país. Podemos comparar os latifúndios improdutivos com os grandes vazios urbanos das cidades”, diz ela. “É uma improdutividade que afeta toda a sociedade”.

Máquinas de estragar casas

Os ocupantes contam que a situação das crianças que vivem nas ocupações não é tão-somente casualidade. É, além disso, ideologia. Num dos encontros na Ocupação, Ezequiel Morais, outro coordenador do MNLM, explica que “para nós, o melhor lugar para a criança é junto com a família. O movimento é um movimento família na essência”. Paula concorda descrevendo como o primeiro lugar a ser organizado nas ocupações em que participou sempre foi a área infantil, chamada de Ciranda, onde as crianças convivem. Mas se as situações pelas quais passam são capazes de traumatizar adultos que há muito lidam com estas questões, fica claro que as crianças necessitam de um olhar ainda mais cuidadoso.

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Na ocupação Saraí, assim como naquelas que a antecederam no mesmo prédio, vivem jovens e suas respectivas famílias. São organizadas atividades de educação e de diversão em conjunto, Desde novinhos, os pequenos e pequenas aprendem não só como é importante lutar para garantir seus direitos, mas também uma outra forma de vivência – compartilhada, coletiva, diferente do que comumente se propaga porta afora do prédio ex-abandonado onde hoje moram.

A escolha pela vivência nessas lutas também é uma escolha de encarar a dura realidade com aqueles que se elegeram para viver junto: amores, parentes, amizades. Para as mães e pais, é uma escolha de não fazer da ilusão uma marca da infância.
Quando da demolição das casas da última ocupação onde morava, Ni conta:
“Até hoje, se minha filhinha vê uma retroescavadeira na rua ela aponta e diz: olha, mãe, uma máquina de estragar casas”.

Texto e Fotos por Jonas Lunardon e Yamini Benites, por Tabaré

Recebido de: Fórum Estadual de Reforma Urbana do RS – FERU/RS

 

*Informações do Censo IBGE/Pnad 2010. No cálculo de imóveis vazios não são considerados imóveis de veraneio e de ocupação ocasional, nem aqueles em que os moradores se encontravam ausentes (por exemplo, em viagem) durante a realização da pesquisa.

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