Resistência é a palavra de ordem no campo de defesa de direitos humanos no Brasil

Abong (Associação Brasileira de ONGs) ao lado de diversas entidades da sociedade civil lançaram no dia 10/12 a campanha #SomosTodosONG, voltada para dar visibilidade aos direitos humanos e a urgência de defesa dessas pautas

Por Monica Santana para Cardume(*) em Observatório da Sociedade Civil

Os direitos humanos são inerentes a todos homens e mulheres, independente de suas posições ideológicas, nacionalidade, credo religioso: são o reconhecimento de que todo ser humano tem direitos básicos e liberdades fundamentais. No dia 10 de dezembro de 1948, em Paris, lideranças dos blocos capitalistas e comunistas se reuniram para aprovar os 30 artigos que compõem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, naquele momento logo após a Segunda Guerra Mundial. Pouco mais de 70 anos depois, a guinada conservadora no Brasil faz parecer que o debate em torno da garantia de direitos básicos, mesmo direitos sociais, culturais, ambientais e políticos são debate da esquerda. A ascensão fascista brasileira institucionaliza práticas de violação de direitos humanos pelo Estado, bem como perda de direitos historicamente garantidos.

A Abong (Associação Brasileira de ONGs) ao lado de diversas entidades da sociedade civil lançaram no dia 10/12 a campanha #SomosTodosONG, voltada para dar visibilidade aos direitos humanos e a urgência de defesa dessas pautas. De acordo com Franklin Félix, coordenador geral da Abong, a campanha é fruto da atuação em rede das organizações e necessidade de que possam ser mais combativas e enfáticas na denúncia das violações e retrocessos no campo democrático. “O nome #SomosTodosONG se dá por conta de todas as violações que têm acontecido no campo dos direitos humanos. A campanha acontece articulando as organizações da sociedade civil que ousam denunciar e anunciar todas as violações que estão acontecendo. Seu lançamento ocorreu em defesa dos direitos no dia 10, em que se celebra em todo mundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos” explica. No vão livre do MASP, em São Paulo, ativistas conversaram com a população sobre a campanha e a preocupação com os caminhos da política de direitos humanos no Brasil.

Na avaliação de Franklin, o ano de 2019 foi bastante adverso e trágico no campo dos direitos humanos, com diversos ataques para os mais distintos grupos: população jovem negra, indígenas, agricultores, quilombolas, pessoas com deficiência, classe trabalhadora. “São inúmeras as violações legitimadas pelo Estado brasileiro”, pontua o coordenador. Do ponto de vista do campo das ONGs, sua avaliação é que diante do cenário de criminalização por parte do Estado Brasileiro, as organizações não-governamentais se mantêm combativas, em movimento e se articulando em rede. “A gente termina o ano com as marcas da violência, mas também se fortalecendo. Muita gente junta, reunida, denunciando inclusive, internacionalmente as violações ocorridas dentro do Brasil nos últimos meses” acrescenta.

#SomosTodosONG

A campanha #SomosTodosONG, idealizada pela Cardume – Comunicação em Defesa de Direitos, busca reforçar a importância das organizações da sociedade civil, minimizando a imagem negativa que se construiu sobre as ONGs. A iniciativa visa retomar o diálogo com os segmentos da sociedade nem sempre alcançados pelas ações das entidades e objetiva informar sobre a importância da sociedade civil organizada fortalecendo assim a atuação das OSCs.

#SomosTodosONG é uma campanha de impacto nas redes sociais, com linguagem simples e didática, explicando os diferentes tipos de organizações e ativistas e qual o impacto delas na sociedade. A ideia é provocar o público a pensar sobre solidariedade, caridade, auxílio ao próximo, militância, ativismo e que são essas práticas desempenhadas pelas organizações não-governamentais. E mostrar que as bandeiras levantadas pelas entidades são coletivas, causas sobre as quais é preciso criar consciência.

Conjuntura

Uma democracia fragilizada, na qual a participação política e a presença popular nos processos decisórios não são bem-vindas, nem bem vista, o que torna possível o avanço de políticas neoliberais, que suprimem direitos de modo acelerado. A leitura é do cientista social e Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Cledisson Santos Júnior, que avalia que a escalada de ataques aos direitos humanos no Brasil é anterior ao governo Bolsonaro, mas se inicia desde 2016. “Estamos diante de um processo de retomada das políticas neoliberais, numa radicalidade que nunca foi vista. Acredito que estamos passando por um teste que visa esgarçar no limite as possibilidades de revolta que o povo brasileiro possa ter frente ao desmonte do bem-estar social e políticas preconizadas pela constituição de 1988”. Em sua avaliação, ocorre no Brasil atualmente, como já fora feito em outros países da América Latina, a exemplo do Chile, no período Pinochet ou no Reino Unido, nos anos Tatcher, um laboratório neoliberal onde são testados os limites da supressão de direitos, sem que isso implique diretamente numa reação da população nas ruas. “Observa-se que a cada vez mais políticas desse tipo são apresentadas, projetos são aprovados no Congresso Nacional – este que se mostra na direção oposta à manutenção da garantia dos direitos do povo brasileiro, que por sua vez, não manifesta indignação nas ruas. Por outro lado, em termos de América Latina, a revolta é um elemento presente e constitutivo da ideia de povo”.

Para o pesquisador, “a luta dos direitos humanos no Brasil nesse início de nova década vai ser permeada pela capacidade das organizações políticas pelos direitos do povo brasileiro em produzir consenso e síntese em torno da luta ser travada. Só o povo na rua será capaz de frear esse ascenso fascista pelo qual o Brasil está passando. Não vai ser fácil e nunca foi fácil na história do Brasil. Eu tenho confiança, numa perspectiva realista e otimista, que seremos capazes de virar esse jogo” conclui o cientista social.

Há mais de 30 anos, Carlos Eduardo Leite, coordenador da ONG Serviços de Assessoria a Organizações Populares Rurais, atua na sociedade civil organizada, iniciando sua caminhada ainda nos anos finais da ditadura. Em sua leitura, o Brasil avança num processo de cerceamento de direitos de modo contínuo desde 2016 e já há três anos não se configura mais num estado pleno de direito. “Nós passamos de um processo da incorporação de direitos básicos. Discutíamos sobre o direito à alimentação de qualidade, entre para um processo de retrocesso no qual voltamos a falar sobre o direito à vida, a requisitar direitos básicos como à saúde, educação. Estamos vivendo um cenário de genocídio, uma ação criminosa permanente, com pouca visibilidade. Os extermínios dos jovens nos centros urbanos, a matança de indígenas nos centros rurais”.

O mais básico direito humano, a continuidade da vida, é pauta dos mais diferentes grupos sociais, dentro da aceleração do campo do conflito e a constância das chacinas, seja nos grandes centros urbanos, seja no meio rural ou nas florestas. “As chacinas que acontecem nos grandes centros urbanos conseguem ter alguma visibilidade. Contudo, as chacinas constantes junto à população indígena, quilombola e rural não são visíveis e avançam em números assustadores”. Para o ativista do campo da agroecologia e da soberania alimentar, a estrutura democrática concebida na Constituição Cidadã de 1988, um dos momentos históricos mais importantes de nossa história, já não se encontra mais vigente. Os conselhos de direitos, que vinham num processo de aprimoramento nas últimas décadas, encontram-se sob intervenção direta do Governo Federal, a exemplo do Conselho Nacional de Direitos Humanos – CNDH, que teve afastada a futura presidente, a subprocuradora do Ministério Público Debora Duprat (ela assumiria a função em janeiro de 2020), a partir de manobra do procurador-geral da União Augusto Aras. Um documento foi assinado por 176 organizações da sociedade civil repudiando a atitude de Aras, que avança na perseguição dos grupos conservadores sobre Deborah Duprat e o próprio conselho, que corre o risco de passar a fazer apologias aos crimes que deveria combater.

No âmbito da participação política, o desmonte segue para os conselhos das mais diferentes naturezas, a exemplo do CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar que fora extinto em decreto da Presidência da República. Se os espaços de monitoramento das políticas públicas já não permitem mais a participação da sociedade civil, Carlos Eduardo Leite sinaliza que é também um momento de resistir e criar alternativas de troca e articulação pelos movimentos sociais. “Estamos organizando uma Conferência Nacional Popular Autônoma, onde discutiremos soberania e segurança alimentar. Uma discussão que será feita à margem do estado, organizada pela sociedade civil. É urgente debater a volta da fome do Brasil e a falta de soberania alimentar. Os indicadores já mostram o retorno da fome no Brasil, um País que já tinha saído do mapa da fome recentemente” afirma.

Horizontes para 2020

Na avaliação de Sonia Gomes Mota, diretora executiva da CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço, o cenário brasileiro não permite otimismo. “Diante do que já estamos vivenciando este ano, no que diz respeito às perseguições e as tentativas de criminalização das OSCs, diante dos desmontes dos espaços de participação e controle da sociedade civil, diante da flexibilização de leis ambientais, das leis trabalhistas, só posso vislumbrar que teremos muito trabalho pela frente. Vislumbramos o exercício de um poder que aprofunda o autoritarismo através de ‘necropolíticas’, violando direitos das maiorias e da natureza”. Na avaliação da gestora, o primeiro ano da próxima década exigirá que a sociedade civil organizada enfrentar as consequências desastrosas das decisões tomadas neste ano de 2019. “Precisaremos estar cada vez mais preparadas e preparados numa boa articulação para continuar na teimosa resistência de quem conhece a história e sabe que muitas das conquistas do povo neste País, foram alcançadas graças ao trabalho intenso das Organizações da Sociedade Civil que junto com os diversos movimentos, nunca desistiu, nem desistirá da democracia e da utopia” adverte.

Consciente de que a mudança do cenário de direitos humanos no País não se dará sem luta, Carlos Eduardo Leite acredita que as organizações da sociedade civil não têm outra saída se não a resistência ao projeto político em curso. “O nosso papel é continuar na resistência, promover eventos que debatam e façam crítica fundamental às perdas de direitos. Precisamos continuar construindo essa resistência. Diante de uma deriva dos partidos políticos progressistas, sem uma atuação fortalecida nas bases sociais, as ONGs e os movimentos sociais seguem firmes, atuando. E diante de uma nova eleição que se aproxima, é de responsabilidade das ONGs pautar direitos humanos no âmbito dos municípios, participando mais ativamente do processo eleitoral” considera o ativista, que mantem a esperança nos saberes e potência dos movimentos sociais.

Direitos Humanos no Brasil em números

Os dados do Atlas da Violência 2019 (IPEA) mostram que o Brasil atingiu o nível histórico de homicídios em 2017: 65.602 homicídios no ano, dos quais mais da metade (35.783 jovens foram assassinados). O número de jovens negros assassinados aumentou 429% ante o de jovens brancos (102%) em 20 anos (dados da Fundação Abrinq).

Em 2018, 20 ativistas ambientais foram mortos no Brasil (4º colocado no ranking de assassinato de ativistas ambientais e lideranças indígenas no mundo).

De acordo com o Índice Gini, o rendimento médio do 1% mais rico da população é 33,8 vezes o rendimento dos 50% mais pobres. Os dados revelam que um décimo da população concentra 43,1% da massa de rendimento médio mensal real domiciliar per capita. Essa realidade faz com que o Brasil esteja entre os 10 países mais desiguais do mundo. Também é o País com a marca de o maior consumidor de agrotóxicos do mundo (FAO) e o 13º país que mais gasta com pesticidas (U$9 por tonelada). Ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios (OMS) e registra uma elevação de 4% nos índices nos anos de 2017 e 2018. O número no País é de 4,8 para cada 100 mil mulheres. Registra 1 morte por LGBTfobia a cada 23 horas no Brasil (Relatório do GGB-Bahia). Segundo o GGB-Bahia, como ocorre subnotificação e negação do caráter de crime de ódio nesses crimes, a expectativa é que esse número seja ainda mais expressivo.

(Foto: Loredana Oliveira)

(*)CARDUME – Comunicação em Defesa de Direitos é uma rede que reúne organizações e movimentos da sociedade civil para ações articuladas de comunicação que potencializem a promoção e defesa de direitos e bens comuns.

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