Com a “Marcha da Abertura” o Fórum começa a se configurar enquanto encontro de identidades e vozes diversas das cidadanias do mundo num esforço de se fortalecer coletivamente diante dos desafios atuais. Num percurso relativamente curto, uns 2 km, a marcha acabou em frente do Museu de Bardo. O dia de hoje amanheceu chuvoso e caiu uma chuva forte um pouco antes e durante a marcha. Assim mesmo, milhares de pessoas se juntaram para demonstrar seu repúdio ao atentado e solidariedade tanto ao povo da Tunísia como às famílias das vítimas. Aquele espírito de unidade na diversidade, que desde o início vem sendo uma marca do FSM, fez-se presente mais uma vez aqui em Túnis.
Domingo próximo, dia 29 de março, no mesmo trajeto de hoje, será realizada uma marcha sob liderança do presidente da República, Béji Caïd Essebi, primeiro ministro e todo o ministério, a Assembleia. A marcha oficial vai contar com a participação de outros chefes de Estado e representantes de governos e parlamentos. Pelos jornais, transpira um desejo das lideranças políticas de reforçar a unidade nacional diante do terrorismo. Teme-se, porém, o reforço da capacidade repressiva do Estado, recentemente saído de uma ditadura violenta, com riscos de transbordamento e limites à liberdade cidadã e ameaças à democracia.
Pelos dados até agora divulgados pelo comitê local, em torno de 5 mil organizações e movimentos sociais, de 120 países, estão representados no FSM 2015. Espera-se de 60 a 70 mil participantes. É visível o engajamento de tunisianas e tunisianos, assim como a forte presença de ativistas do mundo árabe, do Machrek e do Maghreb como eles mesmos afirmam constantemente, para mostrar sua enorme diversidade. A África se faz evidente, mas longe de seu tamanho. Para ativistas africanos a dificuldade é igual ou pior do que para nós da América Latina, pois a relativa proximidade não se reflete nos meios de transporte, onde uma viagem da África do Sul pode exigir 20 horas, com as várias combinações de vôos. A presença de outras partes do mundo mais notável é de europeus. Os franceses, por exemplo, são mais de 600. Também há uma boa delegação dos EUA. Nós do Brasil, além da delegação organizada pela Abong, há vários outras aqui presentes, perfazendo, talvez, uns 170 participantes.
Há algum tempo venho me fazendo uma pergunta fundamental sobre o FSM, questionamento que se reavivou com a minha presença aqui – no FSM de 2013, aqui mesmo em Túnis, não participei. É sobre a sua real contribuição para a cidadania planetária e seu impacto. O aparecimento do FSM em 2001, em plena expansão da ideologia neoliberal como pensamento único, mercantilizador de tudo, e da globalização capitalista, conduzida pelas grandes corporações e suas estratégias de acumulação, submetendo o planeta e todos os povos à lógica de seus negócios, gerou enorme esperança. Seu mote “outro mundo é possível” despertou energias e criatividade ao redor do mundo. A não violência como condição, junto com a negação de protagonismos dogmáticos, onde uns e umas seriam mais importantes do que outros e outras, bem como a afirmação do respeito e valorização da diversidade, para lembrar alguns princípios básicos do FSM desde seu nascedouro, deram condições para a emergência de fundamentos essenciais de uma nova cultura política para a nascente cidadania planetária. Isto se refletiu na prática da auto-organização de eventos no interior do FSM, tendo suas pequenas estruturas criadas, como o Comitê Organizador, o Conselho Internacional e a Secretaria uma função basicamente facilitadora, de apoio.
Bem, o FSM lançou no terreno da cidadania poderosas sementes, que germinaram, mas não vingaram totalmente. Ou seja, o FSM inspirou e ainda inspira, mas não consegue ser o espaço de um diálogo estratégico capaz de gestar um ideário mobilizador e contribuir para por em marcha movimentos irresistíveis de cidadania.
Peguemos o elemento chave da diversidade. O FSM consegue mobilizar grande diversidade, mas não toda diversidade. Pior, a diversidade no FSM significa o respeito às diferentes iniciativas auto-organizadas, justapostas, sem gestar novas possibilidades de articulação e ação. O diálogo continua sendo predominantemente entre iguais e afins, não é a diversidade que move o Fórum e o faz desdobrar para o mundo real, para os locais em que vivemos e militamos.
Nós, participantes, ganhamos ao nos imbuirmos do vibrante espírito do FSM. Mas não mudamos as nossas práticas políticas. Falta vontade para criar poderosos sujeitos coletivos baseados no radical respeito da diversidade e na busca da liga – valores, ideais e análises compartidos e redefinidos para fazer emergir o comum, propostas e estratégias de ação forjadoras de unidade na diversidade – que dá vida a novos “blocos” capazes de desencadear iniciativas comuns, do local ao mundial.
O FSM ainda mantém a chama inspiradora, principalmente rodando o mundo. Cumpre uma grande função educativa, mais do que estratégica. O problema é que o mundo precisa de cidadanias determinadas a transformar o velho mundo em crise e inventar um novo mundo, antes que seja tarde. Precisamos do FSM para ser maior, para ser mais ousado e desafiante para nós mesmos, para descolonizar nossas cabeças, abrir-se radicalmente para o diverso, mas com busca de convergências nas divergências. Precisamos eliminar nossos preconceitos e tabus e vivificar nossas práticas, nosso ativismo. Não temos no horizonte outro espaço. O desafio é reinventar o Fórum Social Mundial. Queremos? Saberemos?
Olhando o programa do FSM 2013 não vejo resposta clara para as questões acima. A diversidade está lá. Mas os desafios estratégicos não estão claros. Fico angustiado em ver quanta energia deixamos se esvair. Ainda tenho a esperança de ser surpreendido nestes dias e continuo alimentando a ideia que, sim, outro FSM também é possível.
Fonte: Ibase, por Cândido Grzybowski