Por Vera Masagão*
O mundo tem experimentado, nestas primeiras décadas do século 21, mudanças importantes de paradigmas. A interatividade proporcionada pela internet e pelas redes sociais transformou a maneira como as pessoas se relacionam com a informação. Na economia, os duros abalos sentidos a partir de 2008 provocaram questionamentos sobre o capitalismo, com debates acirrados sobre os caminhos para a reformulação do sistema. Mas talvez seja na democracia que estejamos presenciando uma das mais profundas mudanças de conceitos e práticas.
Durante sua evolução, o sistema democrático foi marcado pelo desenvolvimento de estruturas hierárquicas e representativas que por muito tempo foram as únicas formas de realizar a intermediação entre os interesses da sociedade e as ações dos governantes. Mas o que estamos testemunhando é o surgimento de caminhos alternativos, em que os indivíduos também têm buscado maneiras próprias de se manifestar, interagir e influenciar os poderes.
No entanto, ao mesmo tempo que a interação mais direta das pessoas significa uma renovação importante na forma de se praticar a democracia no dia a dia, ela traz consigo enorme responsabilidade. Isso porque há a disseminação da falsa ilusão de que os indivíduos, sem a ajuda de organizações, são capazes de realizar as transformações profundas pelas quais tanto lutam.
Os acontecimentos recentes no Egito, na Tailândia e na Ucrânia são demonstrações de que os indivíduos têm forças suficientes para confrontar o status quo. Porém, quando chamados a aprofundar e concretizar as mudanças, não avançam, pois não contam com as bases para construir alternativas, nem com canais de interlocução para novos acordos sociais. As consequências, infelizmente, têm sido o retrocesso, com atitudes de desconstrução democrática.
O grande desafio das organizações da sociedade civil é exatamente o de ser capaz de mediar e interagir com os indivíduos que desejam participar desse processo, servindo como base de conhecimento e de ideias e, ao mesmo tempo, de conseguir ter influência nos círculos de decisão.
No Brasil, a sociedade civil organizada tem procurado entender e atuar de acordo com essa nova realidade. Recentemente, representantes do setor se reuniram para pensar o futuro da atuação social no país e desenharam quatro possíveis cenários para a próxima década.
O projeto, chamado de Sociedade Civil 2023, foi um exercício desafiador, que ofereceu elementos para compreender os riscos e as oportunidades presentes no diálogo entre Estado e sociedade. A mensagem principal extraída foi a necessidade de reforçar as alianças e o diálogo como medida para prevenir eventual acirramento da intolerância e para garantir desenvolvimento social sustentável a longo prazo.
O ambiente para a concretização dessas tarefas é dos mais favoráveis. O Brasil vive momento no qual a sociedade passou a cobrar novo patamar de qualidade nas políticas públicas, com mais ênfase em valores de justiça social e sustentabilidade.
Trata-se de oportunidade singular, na qual todos os agentes têm um papel a desenvolver. Dos entes políticos, esperam-se reformas estruturais que tornem o sistema mais representativo e permeável à participação da sociedade. Dos movimentos sociais, requer-se maior valorização dos caminhos da negociação no sentido de construir um projeto de país que seja coletivo e inclusivo, e, da iniciativa privada, a expectativa é de que haja um engajamento mais amplo e efetivo em políticas de responsabilidade social.
Outra condição essencial é o fortalecimento da sociedade civil organizada brasileira. Nesse sentido, um passo importante foi dado no início de julho, com a aprovação, no Congresso, do Projeto de Lei nº 3.877. A nova legislação reformula princípios e regras que vão trazer segurança jurídica à atuação da sociedade civil, garantindo a sustentabilidade do setor e, com isso, a manutenção desse trabalho fundamental de mediação entre os anseios da sociedade e a atuação de todas as esferas de governo.
Os desafios impostos pelas mudanças de contexto no qual vivemos são enormes. E, para superá-los dentro da nova realidade democrática que ora se apresenta, o aperfeiçoamento da atuação das organizações da sociedade civil é imperativo.
* Diretora executiva da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais