Carroceiros, porque não?

carrocaPor Mauri Cruz

A divulgação de que a partir deste mês já está proibida a circulação de carroças em várias regiões do Orçamento Participativo é extemporânea a equivocada.

Há vários anos vivemos uma polêmica fruto da iniciativa da Câmara de Vereadores de Porto Alegre que, através de uma lei, pretende retirar as carroças do trânsito da Capital. A medida é um absurdo social e jurídico e demonstra a total falta de sensibilidade do Poder Público Municipal que deveria, antes disso, zelar pelo bem estar das populações mais vulneráveis.

Socialmente, não há sequer o que discutir. Por que as pessoas vivem de transportar o lixo da cidade? Vivem disto, primeiro, porque não lhes restou outra opção. Na sua maioria são pessoas que não tiveram oportunidades de estudo, que foram jogadas às margens da sociedade e usadas como mão-de-obra barata na construção civil ou em outras atividades pouco ou muito mal remuneradas. Elas encontram na atividade de coleta e triagem dos resíduos sólidos urbanos uma atividade digna e rentável para amenizar um pouco sua condição de pobreza. Foram se alojar nas ilhas do Rio Guaíba por ser uma área próxima ao centro da cidade e que tem espaço para alojar os cavalos. O resultado deste quadro é que pelas manhãs e ao final da tarde, uma caravana de carroças e carroceiros se deslocam pela ponte do Guaíba em busca de seu sustento.

Haverá aqueles que acusam as carroças de atrapalharem o trânsito. Aliás, o maior inconveniente a ser expresso pelos defensores do fim destes veículos no cenário urbano. Fosse esse o principal problema, a solução seria mais simples. Como o motivo dos deslocamentos dos carroceiros ao centro é buscar o lixo seco deixado nas calçadas pelos condomínios comerciais, bastaria determinar que o lixo seco fosse colocado na via pública após às 20h, ou seja, após o pico da tarde que se encerra às 19h30m. Ocorre que, para limpar as salas e espaços comerciais antes do início do expediente, as faxineiras e profissionais da limpeza iniciam sua jornada às 7h da manhã. Se ficasse até as 20h representaria um excesso de jornada remunerada com horas extras ou, uma política mais justa, a redução da jornada de trabalho e a contratação de mais pessoas para este trabalho. Em qualquer hipótese isso significaria custos aos condomínios e prédios comerciais. Parece que aos olhos dos legisladores ficou bem mais fácil enfrentar os carroceiros do que os donos dos prédios comerciais do centro da cidade.

Juridicamente, a referida lei carece de base legal desde a sua gênese. É plenamente consolidada a decisão do STJ de que a competência para legislar sobre matéria de trânsito é da união. Não pode uma administração municipal proibir, por lei, que um veículo circule pelas vias da cidade. Aliás, a cidade de Piracicaba tentou proibir que caminhões de cana de açúcar circulassem nas vias da área central da cidade e não conseguiram por causa da competência da União. Isso porque, a Constituição Federal, em seu artigo 22, inciso XI, define que é competência privativa da União legislar sobre trânsito e transportes. Esta competência se consolidou na Lei 9503 de 23 de setembro de 1997, o conhecido Código de Trânsito Brasileiro. Esta lei específica define, em seu artigo 96, quais são os veículos segundo o tipo e finalidade que podem circular em todo o território nacional. Neste mesmo artigo, as carroças são definidas como veículos de tração animal para transportes de carga. Já as bicicletas são definidas como veículos de propulsão humana para transportes de pessoas. Pelo que se pode depreender pela clareza cristalina da Constituição Federal e da legislação específica sobre o tema, é impossível juridicamente um município proibir que as carroças, em tese, circulem na cidade. Isso vale também para as bicicletas, os caminhões, os automóveis ou outros veículos definidos pelo CTB.

Há sim, competência municipal na gestão do trânsito. Mas esta competência, como reza o artigo 24 do CTB, é no sentido da operação e fiscalização do trânsito. Assim, poderia a administração municipal de Porto Alegre proibir a circulação de carroças. Mas essa proibição terá que ser pontual, específica, em cada via, com a devida sinalização vertical ou horizontal indicando a proibição, o trecho e os horários.

Se bem que, neste caso, deverá o Poder Público dar continuidade ao processo de cadastramento iniciado pela EPTC em 1999, que reconheceu as carroças como veículos parte do sistema de trânsito, dotando-os de placas e de sinalização apropriada e os carroceiros como condutores e cidadãos do trânsito urbano, com documentação de identificação e certidão de propriedade dos seus veículos e animais. Esta medida, além de atender ao dispositivo legal do CTB, também permitiu a responsabilização dos carroceiros por infrações, como qualquer condutor brasileiro. Tudo dentro da lei e dos princípios da dignidade humana.

Aliás, após a pressão dos carroceiros, esta estratégia foi incluída na legislação como condição da retirada das carroças somente após a inclusão dos carroceiros em outras atividades econômicas. Embora descrita na lei como um mera intenção, não sendo uma obrigação do Poder Público, esta medida ensejou a elaboração de projeto de inclusão produtiva aprovado pelo Governo Federal através do BNDES e que, depois de muita demora do Município, somente agora começa a dar seus primeiros passos.

Por isso, a divulgação de que a partir deste mês já está proibida a circulação de carroças em várias regiões do Orçamento Participativo é extemporânea a equivocada. Sequer iniciou-se o processo de reorganização e capacitação dos carroceiros e foi discutido com a categoria a metodologia e forma de trabalho que será desenvolvido.

Aliás, aqui cabe uma observação técnica. A retirada das carroças em nada vai aliviar o suplício dos motoristas no trânsito de Porto Alegre. Elas, em nada contribuem para a lentidão do trânsito e para o estresse diário dos condutores. A causa do caos no trânsito é o excesso de veículos, a falta de planejamento do uso e ocupação do território, o pouco investimento em transporte público e a ausência de uma gestão integrada e inteligente da circulação na cidade. As carroças em nada têm a ver com isso. Pior, com a saída das carroças, caso isso ocorra, serão necessários mais caminhões para retirarem as 180 toneladas de lixo diário do centro da cidade o que, certamente irá piorar as condições de trafegabilidade no centro da cidade. Assim, na ótica dos direitos humanos, na ótica legal e numa perspectiva pragmática parece claro que a medida é ilegal, antissocial e inócua. Infelizmente, não é a única que temos assistido nestas paragens.

Mauri Cruz é advogado socioambiental com especialização em direitos humanos; professor de pós-graduação e consultor em políticas públicas.

Um comentário sobre “Carroceiros, porque não?

  1. Maravilha de texto! Da Capital ao interior, a polêmica não é diferente, resguardadas as dimensões. Lembro que neste ano, no retorno da participação no Grito dos Excluídos, parei com um companheiro de movimento para trocar umas palavras com uns sujeitos que estavam deitados na calçada, nas imediações do viaduto junto à Voluntários da Pátria e Farrapos. A queixa deles remeteu a esta discussão. Aqui na reserva ecológica do Taim, quem atravanca o trânsito e põe vidas em risco são as capivaras. Ora, numa e noutra situação o que se está observando é sim a crescente desumanidade e o descaso, tanto com os semelhantes,quanto com o meio ambiente, do qual tod@s fazemos parte. Não pensam os privilegiados condutores de automóveis em reduzir a velocidade, tampouco dividir espaço – território, como diz o texto. Desta forma, o desenvolvimento se preocupa, sim, com alguns, mas nunca com tod@s. Talvez se o lixo começasse a se acumular por falta desta força de trabalho e ineficácia do serviço prestado, nem transeuntes nem os carros pudessem se locomover confortavelmente na cidade. Por outro, lado estas migalhas fazem falta não apenas àqueles que também gozam, teoricamente, do direito de ir e vir, mas que necessitam dos parcos recursos que lhes permitem a sobrevivência.

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